Você quer aquilo que você deseja? – 15/08/2021 – Maria Homem

Essa é uma das questões fundamentais da psicanálise. Está nos congressos, nos jornais, até nas redes e nas TVs. É título de livro e de live.

Foi extensamente trabalhada por Lacan ao longo de sua obra: a ética da psicanálise tem a ver com não recuar diante de seu desejo —como ele trabalha a partir da análise de Antígona, de Sófocles. Esse, de fato, é um dos pivôs da descoberta freudiana: o conflito estrutural que nos habita.

Por que sabemos tão pouco do que somos e do que desejamos? Queremos o que desejamos? Ou criamos mecanismos de repressão diante do que nos atrai mas apavora?

Quando Freud escutou o inconsciente que se expressava nos sintomas e nas artes na virada do século 19 para o 20, tivemos a certeza de que racionalidade e livre-arbítrio não se casavam muito bem com outras camadas do ser.

Mas hoje gostaria de trazer essa conversa para seus desdobramentos contemporâneos. Como esta pergunta passa a circular em nossa cultura de massa, as respostas a ela são as mais variadas e curiosas.

“Você quer o que você deseja? Claro que não! Deus me livre.” Ou então: “Vade retro, sai demônio!” Também há as mais amenas, dignas justamente do conflito: “Às vezes quero, outras não”. Ou: “Quase nunca”.

Para ficar claro o tamanho da encruzilhada, lembremos alguns exemplos didáticos (e clínicos): você não quer viver a sexualidade que pulsa em você. Ou não quer se casar com ou se separar de uma certa pessoa, mesmo sofrendo. Ou não quer trabalhar com o que desejaria fazer. A questão não é pequena.

Como diria Schopenhauer, no início do século 19, “o homem é livre para fazer o que quer mas não para querer o que quer.”

Nem sei se eu diria que o homem é livre para fazer o que quer, mas, de todo modo, surgia aí uma nova sensibilidade subjetiva e simbólica que começa a interrogar mais profundamente o desejo humano e nossa limitada consciência. E a tirar preceitos éticos disso.

Aí temos Nietzsche, no final do século 19, com uma de suas máximas mais conhecidas: “Torna-te o que tu és”. Que na verdade, em sua ciência alegre e altiva, traz a releitura de um antigo preceito de Píndaro, poeta grego do século 5 a.C.: ao homem cabe explorar seu potencial e ter a coragem e a determinação de ser tudo aquilo que pode vir a ser. Menos que isso é pouco. Menos que isso é covardia.

Nessa esteira, de raiz tão antiga, chegamos na filosofia contemporânea, com Deleuze, que nos diz que essa é justamente a obra de uma vida. Relendo os antigos, Spinoza ou Nietzsche, o x da ética, onde ela se encontra com a estética, seria justamente construir com a própria vida uma obra de arte.

Aqui de novo as redes nos ajudam a dar alguma leveza. E, com sua lógica ancorada no meme, apontam o extremo ideal embutido na missão. “Torna-te aquilo que tu és, mas de leve, senão dá ruim”. “Opa, muito cuidado nessa hora”. “Hahaha. Melhor não”.

Enfim, vemos que, mais que uma das questões fundamentais da psicanálise ou mesmo da filosofia, essa é uma das grandes questões humanas.

“Conhece-te a ti mesmo”. Na boca de Sócrates, inscrita no Templo de Apolo em Delfos ou na falação contemporânea, a máxima não cessa de se inscrever. E hoje respondemos: “Conhece a ti mesmo, mas não muito, se não dá vontade de chorar”. Ou: “Beleza, me autoconheci e não gostei. E agora?”. E para fechar: “OK, já me conheci, agora gostaria de me desconhecer”.

Eu só gostaria de dizer que isso é impossível: a consciência é irreversível.

Nos resta agora saber o que fazer com tudo o que vemos e não gostamos.

@maria.homem

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