As negociações e os conflitos que decorrem delas fazem parte da vida em sociedade e, ainda que a prática da negociação seja mais fortemente associada ao ambiente empresarial, ela está presente em delicadas questões geopolíticas, impasses orçamentários em empresas e mesmo em questões domésticas e relações familiares e corporativas.
Para o psicólogo Daniel Shapiro, fundador do Programa Internacional de Negociação da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o que essas situações têm em comum é a alta carga emocional, que despertam reações inconscientes que inviabilizam avanços.
Polarizações, sejam políticas ou entre pessoas da mesma família, diz, são reações emocionais complicadas, mas nem por isso impossíveis. Em “Negociando o Inegociável”, lançado em julho no Brasil pela GloboLivros, Shapiro detalha o que pretende ser um manual para lidar com essas emoções e chegar a soluções.
A experiência na mediação de conflitos –Shapiro trabalhou em negociações entre a China continental e Taiwan, em diferentes partes da África, no conflito israelo-palestino e na Europa central na virada do comunismo para o capitalismo– levou ao aprimoramento dessa metodologia que batizou de “teoria da identidade relacional”.
Para ele, a noção de identidade é central nos conflitos contemporâneos. Uma vez ameaçada, ela expõe os envolvidos a iscas mentais –ou tentações– que mantêm o estado de conflito e impedem uma resolução.
Shapiro diz ter identificado as cinco principais tentações —vertigem, compulsão à repetição, tabus, ataque ao sagrado e política de identidade— a partir da observação de um exercício repetido por ele em diversos ambientes e com diferentes audiências.
Na simulação, o grupo é estimulado a se agrupar em tribos com valores comuns —uma identidade é forjada entre eles. Organizados esses grupos, um alienígena invade a sala e faz uma única exigência: “escolham um único líder para representá-lo ou destruirei o mundo.” Invariavelmente, diz Shapiro, o mundo explode.
A primeira dessas experiências foi no Estado da Macedônia, sob tensão e iminente conflito étnico, ainda nos anos 1990. Naquele que talvez seja o mais curioso, “o mundo explodiu em Davos” —45 líderes mundiais, entre políticos e grandes executivos, foram convidados a participar da dinâmica.
A racionalidade, ou pressupor que os lados estejam sendo racionais no diálogo, segundo ele, não é suficiente. “Supomos que cada lado realmente tenha uma preocupação racional e use processos racionais para satisfazer essas preocupações. Quando se trata desses conflitos de grande carga emocional, não é suficiente.”
Segundo Shapiro, é a identidade o elemento invisível que, em conflitos de grande carga emocional, acaba ativando o que ele chama de efeito das tribos, um estado mental de alerta e polarização.
Com a pandemia, diz o psicólogo, estamos todos sob intenso estresse, o que torna as chances de as negociações terminarem em um acordo ainda menores. “É como reunir grupos de identidades distintas para negociar em uma sala escura e apertada.”
Veja os principais trechos da entrevista concedida à Folha por videoconferência.
Novo livro
O trabalho que faço é em negociação e solução de conflitos. Estou nessa área há 30 e poucos anos —e minha calvície é a prova disso. Tenho observado como as pessoas negociam, o que funciona e o que não funciona nos mais significativos conflitos de nossas vidas, sejam profundamente políticos, ou desafios diários carregados de emoção.
O que descobri é que as pessoas tendem a negociar em um nível irracional. Supomos que cada lado realmente tenha uma preocupação racional e use processos racionais para satisfazer essas preocupações. Quando se trata desses conflitos de grande carga emocional, a racionalidade não é suficiente.
Como podemos entender e lidar com as dimensões mais profundas desses conflitos? Então, “Negociando o Inegociável” é uma forma de explorar essas dimensões do conflito que levam à polarização e como podemos entender mais profundamente esses conflitos –e que eu coloco na categoria da identidade.
Existem tantos bons livros por aí que oferecem soluções rápidas, que oferecem respostas fáceis para lidar com problemas difíceis. Mas para realmente chegar à raiz dos problemas que enfrentamos em nossas sociedades e em nossas vidas, precisamos compreender profundamente essas dimensões. O papel da emoção, o papel da identidade e como eles nos afetam e como os afetamos para uma mudança construtiva.
As cinco tentações
Por que as sociedades e as famílias estão polarizadas? Mesmo quando se trata de um enorme custo emocional para pais, filhos, avós, por que fazemos isso? Essa é a questão sobre a qual venho pensando há muitos anos.
Em “Negociando o Inegociável”, discuto os cinco principais instigadores da mentalidade da tribo, que chamo de tentações. Eles são os instigadores de conflitos. No momento em que nossa identidade parece ameaçada, essas tentações começam a nos tentar em direção à mente tribal.
Desenvolvendo o método
Assistindo àquele exercício da tribo, e o mundo explodindo de novo e de novo, me pergunto o que está acontecendo. Como essas pessoas, os líderes mais racionais do mundo, pessoas afetivas e amorosas estão explodindo o mundo de novo. Por quê? Cinco tentações, cinco iscas.
Vertigem
Primeiro, entramos rapidamente no que chamo de vertigem. A ideia aqui é que, se entrarmos em um conflito com meu cônjuge, muito rapidamente podemos ser consumidos nesse conflito e uma discussão de dois minutos sobre quem deveria ter lavado a louça se transforma em duas horas de discussão horrível. Estamos em vertigem.
As polarizações dos Estados Unidos estão indiscutivelmente em um lugar de vertigem, consumidos no conflito, pensando estritamente sobre isso não podemos ver o quadro geral, estamos presos em nosso próprio pequeno lugar. Estamos presos na vertigem.
A palavra significa tontura, e essa é a experiência aqui. De repente, estou consumido pela vertigem, perco a noção de tempo e espaço e minha compreensão de tudo some. Parece sair daqui, um dos caminhos é perguntar “qual é o meu propósito nesse conflito?”.
Compulsão à repetição
Como seres humanos, tendemos a repetir os mesmos padrões de comportamento disfuncionais de novo e de novo e de novo. Seja no sistema familiar, todos podemos prever os conflitos que teremos no domingo à noite, com a esposa ou filhos. Sabemos o que cada pessoa vai dizer, sabemos o que elas vão fazer e como vamos nos sentir depois. É uma compulsão à repetição.
E também somos muito bons em prever, por meio de intuição e palpite, em um nível nacional ou local, “opa, lá vamos nós de novo”. E esse é um daqueles momentos em que um grupo vai dizer isso, o outro vai dizer aquilo, e começarão apontar o dedo um para o outro e vai levar à violência.
O problema como essa repetição é que esse padrão vira parte da nossa identidade e vira uma tatuagem. É muito difícil de se livrar disso, é mais que um simples hábito, é muito mais profundo. A saída para a compulsão à repetição é tomar ciência disso e realmente olhar para esse padrão em que eu costumo entrar com aquela pessoa. Por que e como eu posso me livrar disso.
Tabus
O que, na sociedade brasileira, é um tabu de se conversar? Se você falar de certo assunto, vai ter muitos problemas, será punido, rejeitado socialmente e corre o risco de ser agredido fisicamente.
Uma coisa que é um tabu nos Estados Unidos é um apoiador do Trump e um do Biden sentarem lado a lado para uma refeição. Como se um lado fosse contaminar o outro. O medo não é infundado.
Acho que, no momento em que uma pessoa de um lado olha alguém de sua tribo se associar com alguém da tribo oposta, bem, um tabu da associação acaba de ser quebrado. “Você está traindo nossa tribo? Está traindo nossa gente? Não fale com eles!” Bem, mas como você pode solucionar um conflito, como você reduz as polarizações se os lados não conversam.
Ataque ao sagrado
Toda tribo política, toda família tem crenças, valores que considera sagrados. Se você sente que eu a ofendi ou ameacei aquilo que para você tem grande importância, religioso ou secular, bum, voltamos à mentalidade tribal.
A imagem na minha cabeça é a de uma cobra que salta sobre você, quando você ofende algo muito sagrado. Também penso que no contexto moderno, politicamente as pessoas podem tornar alguns assuntos sagrados, e são eles que constroem as tribos internas e tornam mais difícil a reconciliação com outros grupos.
Política de identidade
Uso o termo de maneira um pouco diferente daquilo que foi popularizado. Acho que as pessoas normalmente veem políticas de identidade [no Brasil, o termo é traduzido mais frequentemente como políticas identitárias] como a reunião de grupos minoritários para tentar criar mudanças políticas em certos assuntos.
Para mim, política de identidade é o uso ou o mau uso da identidade para atingir certos objetivos políticos. Quando um líder diz “nós temos que nos unir para melhorar o nosso país.” Temos que nos unir, mas quem é esse “nós” a que ele se refere? Na maior parte das vezes, não vale para todo mundo, vale somente para alguns grupos, e cria, com frequência de maneira explícita, uma dinâmica de nós contra eles. Nós temos que nos unir para brigar como eles. Políticas de identidade podem ser usadas para dividir.
Meu conselho: em uma democracia funcional, use política de identidade para unir. Foque em um “nós” mais amplo. Todos nós juntos. Sim, temos tribos menores com interesses políticos. Ótimo. E todos somos parte de um projeto maior. Você pode fazer o que Mandela fez, você pode unir, usar essas políticas de identidade para unir.
O efeito da tribo
A pandemia colocou muito estresse em todos. Ansiedade, a dor de perder um parente, perder alguém próximo –e meu coração está com o Brasil, sei que sofreu muito. Acho que isso é um fardo, um peso emocional que está sobre os ombros de todos.
Enquanto isso, devemos fazer tudo o que fazíamos antes, agora no Zoom. Todos esses fardos emocionais nos fazem, em parte, querer buscar algum tipo de segurança emocional e ela pode vir na forma de nos aproximarmos de um grupo ao qual sinto que pertenço. Para uma tribo.
O problema é que as tensões também começam a aparecer entre os diferentes grupos, que estão muito mais comprimidos agora, estão mais apertados, por conta da pandemia.
Sob pressão
Acho que a pandemia está tendo um grande impacto na busca de segurança. A tribo é uma forma de segurança, mas pode facilmente se transformar em uma mentalidade tribal de “nós contra eles”.
A pandemia comprimiu todos nós. É muito mais difícil passar pelo desagradável. E estar emocionalmente desconfortável é como estar em um campo aberto com seus arquiinimigos. Estamos em um ambiente comprimido e todos esses instintos tribais são ativados com muito mais facilidade.
Quando há hierarquia
O poder é muito maleável. Acho que existem dezenas de fontes de poder. Algumas pessoas têm mais poder hierárquico. Se eu tenho dinheiro, as pessoas podem atender o telefone com mais frequência.
Mas, em uma negociação, é útil tentar descobrir quais são minhas fontes de poder. Se não chegarmos a um acordo, o que posso fazer? Há poder, por exemplo, em entender os interesses do outro lado. Se estou negociando com você uma nova política para a empresa e precisamos que o presidente diga sim, que o vice-presidente aceite. Quanto mais eu entendo os interesses dos outros, mais poderoso sou.
Saúde mental no trabalho
Um dos conceitos mais fundamentais, em minha opinião, é o poder da apreciação. Apreciação, da forma como uso, não significa apenas dizer obrigado, não é gratidão. O que quero dizer é um entendimento profundo daquilo que a outra pessoa vive.
Enquanto passamos pela pandemia, acredito que, como seres humanos, precisamos de mais apreço do que nunca. Então, no local de trabalho, talvez a liderança executiva possa encontrar maneiras de ser um pouco mais gentil com a força de trabalho.
Não significa que as expectativas são menores, mas que o apoio é maior. É dizer ‘estamos aqui para você emocionalmente, nos preocupamos com você. Você não é apenas um objeto que está produzindo dinheiro para nós, é um ser humano que valorizamos’.
Vejo executivos agindo como ‘estou no comando, vou falar e mostrar o quanto sou inteligente’. A pandemia exige muito mais ouvir.
Ouvir mais, falar menos
É comum que igualemos negociações a conversas. Nós as chamamos de conversas de negociação [negotiation talks]. Uma terminologia muito melhor seria chamá-las de “ouvintes de negociação” [negotiation listens].
Porque você vai liderar muito mais a negociação se ouvir. Se você escuta 80% do tempo, e fala 20% do tempo e vice-versa.
Penso isso também sobre minha própria vida. Sabe, encontre tempo e espaço para dar um passeio, sentar-se em silêncio por dez minutos e absorver o que está acontecendo, reconhecer suas emoções.
E a razão para isso é que serei muito mais eficaz em minha vida pessoal e profissional se entendo o luto, os sentimentos, ressentimentos ou o desejo por mais amor e conexão. Quanto mais estou ciente de minha própria experiência interna, mais posso realmente interagir com os outros. Estar atento e ouvir é mesmo muito importante.